Resenhas

ORLANDI, Eni Pulcinelli,  Discurso e Leitura. 8a. ed.  São Paulo: Cortez, 2008.

Eni Pulcinelli Orlandi inicia sua obra “Discurso e Leitura”, publicada em 1988 (e esta 8ª edição publicada pela editora Cortez em 2008), apresentando o caráter polissêmico da leitura, destacando a necessidade de serem distinguidas suas diversas noções. De início, a autora cita a acepção de leitura como “atribuição de sentidos” – a qual diz respeito tanto à escrita quando à oralidade – e a leitura vista como “concepção” – “leitura de mundo”. Estas são relações menos diferenciadas. Ao partir para um sentido mais restrito, como o acadêmico e o escolar, a leitura passa a exercer o papel de construir uma base teórica e/ou metodológica e de aprendizagem formal (alfabetização), respectivamente.

Em meio a essa pluralidade, a autora estabelece de quais sentidos ela irá se apropriar para o aspecto discursivo de sua reflexão: a ideia de interpretação e de compreensão. A partir destes, surgem fatores que impõem a importância dessa ponderação: o de que o sujeito-leitor possui sua própria especificidade; o de que há variados modos de leitura; etc.

Desse modo, Orlandi expõe o que impulsionou sua contemplação: o conceito de legibilidade. Para ela, a legibilidade de um texto traz certo teor de “julgamento” e se relaciona com o fato de haver um “leitor virtual” (“leitor imaginário”, idealizado pelo autor; é para quem o autor se dirige), que é constituído enquanto se escreve, para cada texto. Portanto, a legibilidade não parte da afirmação de que “um texto bem escrito é legível”: a base da legibilidade provém da condição da relação que se estabelece com o texto.

Há uma apropriação do “leitor virtual” pelo “leitor real”. Verifica-se um processo de interação da leitura, no qual a relação básica refere-se a essa apropriação. O leitor não interage com o texto, mas sim com demais sujeitos. Assim, o interlocutor se identifica como tal e sujeitos e sentidos se encaixam em um mesmo processo. Desta maneira, nasce uma relação que forma um dos constituintes do contexto. Mas, essa não é a única: há também os modos de leitura, que expõem novos modelos de relação “texto-leitor” e que se referem a diferentes tipos de relação: do texto com o autor; do texto com outros textos; do texto com o leitor; etc (essa relação “autor/leitor/texto” descarta a possibilidade de se pensar em um leitor onisciente, por exemplo).

É esse condicionamento que determina as circunstâncias de geração de leitura e a relação de posições histórica e socialmente determinadas.

Antes de entrar efetivamente em sua análise, a autora considera, ainda, o “implícito" e a “intertextualidade”. Basicamente, não deve ser considerado só o que é dito no texto e algumas relações de sentido se estabelecem entre o que é e o que não é explícito. Além disso, há a apresentação do conceito de “relações de forças”. Este diz que o lugar social do interlocutor influencia na significação, ou seja, o sentido de um texto é estabelecido pela posição que o autor e o leitor ocupam. Assim, conclui-se que a complexidade tem a ver com a significação: não se interpreta um texto de caráter literário e um de caráter científico da mesma forma, por exemplo. Para a autora, ninguém lê o que quiser em um texto, nem do jeito que quer (aqui, só há implicação da referência histórica, que determina porque alguns sentidos são e outros não são lidos).

1ª parte: Método/História.

Linguagem e método: uma questão de análise de discurso.

Depois dessa apresentação da obra, Orlandi passa a retratar a linguagem e o método como questões de análise de discurso, utilizando afirmações de Saussure e Paul Veyne para declarar que é o método que determina o objeto e que um acontecimento acarreta em muitos objetos de conhecimento. Assim, é distinguido o “dado” (empírico) do “objeto” (científico). Partindo deste ponto, ela mostra a existência da ambiguidade da linguagem, que é instauradora e/ou desveladora de mundo, e ressalta que mesmo que quase nunca escapemos da ambiguidade presente entre ciência e arte jamais abandonaremos a tão variada natureza da linguagem.

Em seguida, a autora retoma os conceitos de “dado” e “objeto”, anunciando que um objeto é definido com base em um dado por meio da metodologia, a qual se envolve com um grupo de definições e com toda uma teoria. Orlandi cita, neste ponto, os estudos da linguagem do século XIX e do estruturalismo do século XX para ilustrar tal ideia e salienta, também, que sempre haverá alguma inferência filosófica que desconhecemos na linguagem.

Desta maneira, há um primeiro recorte a ser considerado por ser básico para a análise de discurso: o objeto-linguagem. Este aborda como o fenômeno linguístico se constitui (linguagem vista como transformadora). Entretanto, é necessário um comprometimento específico, estabelecido pelo conceito social e histórico, para os objetivos da análise de discurso. Ao considerarmos que o discurso é um objeto histórico-social (no qual se verifica um modo social de produzir linguagem), a linguagem é encarada como uma maneira de interação indispensável para as interações “homem-realidade natural” e “homem-realidade social”.

Assim como o falante e o ouvinte, o lugar também faz parte e é constitutivo de significação. São estabelecidas, por consequência, relações de força e de sentido no discurso (esta última envolvendo a intertextualidade – já citada – por não se tratar de um único discurso, mas de um continuum). À vista disso é que se institui a previsão (estratégia discursiva de “prever”). São essas antecipações que vão guiar a argumentação.

Dada a maneira como é feita a produção do discurso, Orlandi designa uma relação entre a linguagem e a exterioridade. A apropriação da linguagem não é um ato individual, mas social – o sujeito que reproduz a linguagem está reproduzido nela. Além disso, a escolha do uso dos meios formais depende do contexto social (da formação ideológica).

Para a autora, o processo de produção de linguagem engloba três partes da ciência: o materialismo histórico, a linguística e a teoria do discurso; e a produção do discurso, dois processos: o parafrásico (elaboração de um mesmo sentido sob vários meios) e o polissêmico (sempre haverá diferentes sentidos possíveis). A diferenciação desses dois processos traz a diferença existente entre criatividade e produtividade, e a tensão entre esses mesmos dois processos, o conceito de “literalidade” – em que todos os sentidos são possíveis; mesmo que ocorra a dominação por um sentido este não exclui sua relação com os demais.

Abordar o conceito de literalidade nos remete ao conceito de legitimidade, que contempla a existência de um sentido oficial. É o sentido que se constitui a cada momento na interlocução que constitui a linguagem. Conclui-se, portanto, que a produção da literalidade é dada historicamente.

Nesse segundo momento do capítulo, a escritora parte para a análise da relação das técnicas com o objeto de análise. Tomando o texto (unidade complexa de significação, que se constitui no processo de interação) como unidade da análise do discurso, vê-se que a relação que existe entre discurso e texto é a mesma que existe entre o objeto teórico da análise. Essa noção de texto tomada a partir da análise de discurso extrapola a noção simples de informação: passa para a segmentação e, posteriormente, para o recorte (depende de um contexto que se refere à ideologia), que irão se distribuir de modo a estipular unidades discursivas.

Após isso, é indicada a incompletude como condição de existência da linguagem. A incompletude constitui uma interação (o sentido não se aloja separadamente nos interlocutores, mas no espaço discursivo criado por estes) e contempla o fato de que é a multiplicidade de sentidos possíveis que caracteriza qualquer discurso.

Apoiada a isso, a autora aborda outro conceito: o de funcionamento. O funcionamento diz respeito à estruturação de um discurso determinado, e se relaciona com o “tipo”, que é o que permite a generalização de certas características e que equivale a um princípio de categoria no quesito de organização. Essa relação tem como função mostrar a relevância de cada discurso e de distinguir seus vários modelos. Fundamentando-se neste aspecto e na tentativa que os “tipos” têm de descrever, Orlandi estabelece, ainda, alguns “tipos”: o “tipo autoritário”, o “discurso polissêmico” e o “discurso lúdico”.

Buscando separar as características que diferem o modo como os discursos funcionam, a escritora estabelece a distinção entre “marcas” e “propriedades”. As “marcas” se referem à organização do discurso. Já as “propriedades” com o ato de considerar o todo do discurso em relação à exterioridade. Segundo a autora, são (esses) conceitos mediadores que conectam o linguístico ao ideológico.

A função mais própria da universidade e sua configuração histórica.

A leitura, o trabalho intelectual e a universidade que levaram Orlandi a propor esse tema: nesse capítulo ela busca colocar o trabalho intelectual entre a leitura e a universidade, com duas finalidades. A primeira, de relacionar a noção de leitura com a de trabalho intelectual, de modo a deixar esse meio mais específico, que sempre toma, imediatamente, o caráter técnico da leitura – havendo um imediatismo exagerado. Desse modo, a autora apresenta uma crítica ao pragmatismo da educação, que reproduz um estado de coisas das quais discorda (oferecendo ao aluno só mais um artefato instrumental escolar), e insere sua preocupação de não aceitar um pedagogismo de que a tematização da leitura padece.

A segunda finalidade é a de atribuir uma maior exatidão à maneira que se toma o conceito de universidade com a ajuda do “trabalho intelectual”. Essa relação de “prestação de serviços” que a comunidade tem para com a universidade é um problema, segundo a autora. Além de não fazer com que a universidade reflita sobre suas ações em si mesmas, não possibilita viabilização de soluções para suas próprias dificuldades de ensino. Deste modo, as dificuldades e os problemas são reproduzidos. Ao falar em exterioridade, falamos de uma universidade que se repete em sua circularidade, o que faz com que ela atua sem crítica e de forma anacrônica.

Em meio a isso, é proposto que a relação da universidade com os demais setores sociais aconteça de maneira clara e crítica. A maior intenção é colocar em pauta o conceito de escolaridade no âmbito da universidade, através da ideia de trabalho intelectual, de modo que sejamos inseridos em um contexto que a leitura não precise de incentivo, mas se torne uma real necessidade.

 

 

 

Leitura: questão linguística, social ou pedagógica?

Método e redução

A autora tenta deixar claro, nesta parte, que se separam as questões linguística, pedagógica e social apenas para conhecê-las. Elas são, na verdade, integradas. A leitura é uma questão linguística, pedagógica e social ao mesmo tempo e Orlandi não acredita que a leitura deve se restringir apenas a seu caráter mais técnico: isso faz com que a leitura seja encarada somente como uma estratégia imediatista do pedagogismo. O fato de ser vista dessa forma leva o pedagogismo a propor técnicas para que apenas “se dê conta” de resolver as questões de leitura.

Vejamos agora a questão de classes sociais na sua relação com a escola e a leitura e o que é leitura.

Para a classe média, diz a autora, ou você tem um conhecimento dominante ou um conhecimento rebaixado. Sendo a sociedade dividida, existem formas de saber legítimas e não legítimas (mas que deveriam ser) e o conhecimento do legítimo desconhece a luta de classes. Aborda-se, dessa forma, uma reivindicação essencial: além de requerer as formas legítimas devem ser criadas novas formas de conhecimento, que contemplem as condições sociais concretas do aprendiz.

Entramos, após tais considerações, na conceituação de leitura. Para a linguística, leitura é decodificação. Para a análise de discurso, reducionismo linguístico. Mas, Orlandi cita, também, uma visão oposta ao reducionismo. Tal visão procura observar o processo de produção e de significação da leitura e considera que o leitor atribui sentidos ao texto.

Linguagem verbal e não-verbal

Orlandi começa este tópico argumentando prontamente que a escola se esquece de que o aluno convive com diversas formas de linguagem. A articulação dessas várias formas é que constitui o universo simbólico, ou seja, o aprendiz traz pra leitura sua experiência e sua relação com a multiplicidade da linguagem.

Entretanto, a escola valoriza a escrita e a oralidade, deixando de incluir a linguagem não-verbal. Assim, exclui-se a relação que o aluno-leitor teve com outras linguagens e sua prática de leitura fora da escola. Esse fundamento para metodologia de leitura tem acarretado em consequências danosas.

O conhecimento recusado

Dessa forma, a escola se posiciona como se o aluno nunca tivesse passado por qualquer processo de aprendizagem. Ao invés de utilizar os conhecimentos supostos como ponto de partida, de modo a alavancar o aprendizado do aluno, se utiliza do conhecimento que o aluno já tem, fazendo com que esse conhecimento seja suposto, recusado e desvalorizado ao mesmo tempo. Outras articulações, como o mundo da música, do cinema – que podem nos levar a entrar num mundo simbólico –, que deveriam ser exploradas, não são contempladas na escola.

As histórias das leituras

Orlandi começa esta parte de sua obra afirmando que toda leitura tem sua história. Leituras que são possíveis em certas épocas não são possíveis em outras: um mesmo texto é lido de maneiras diferentes em tempos distintos – além de outras variações, como o caráter social, etc. Partindo desse pressuposto, há certo número de leituras previstas para certo texto. A partir disso, a autora enumera dois elementos que determinam a previsibilidade das leituras: o fato de haver sedimentação de sentidos e a intertextualidade.

Após tal explanação, parte-se para a apresentação da legitimação (que se faz de formas variadas no processo histórico). Na escola, por exemplo, há especialistas com tal função para os diversos domínios científicos, mas, a respeito desse conceito, há outros aspectos a serem considerados: o de que todo leitor tem uma história de leitura e de que é isso que configura a compreensão. As leituras já executadas pelo leitor instituem sua história de leitura e seu aspecto previsível (e imprevisível, também), o que estabelece que leituras tenham histórias no plural. Surge, aqui, um limite difícil de ser traçado na relação da leitura que envolve aquilo que se espera que seja compreendido. O que é proposto a respeito disso é que a relação de compreensão de um texto considere a história de leitura do leitor.

Algumas consequências: pedagógicas e teóricas

O professor tem o poder de mudar as condições de leitura do aprendiz de modo que ele construa sua história de leitura, estabelecendo relações intertextuais. A sistematização é vista como proposta de método de leitura – consequente da previsibilidade. Apesar de ser possível ensinar leitura na escola atual, isso não fica claro. Muda-se o modo de leitura do aluno dando-o notas baixas, por exemplo. No entanto, não se deve petrificar leituras possíveis, para que assim sempre aconteçam descobertas e leituras novas.

A leitura executada por uma autoridade tem sido a melhor leitura, que é tomada como modelo. Porém, ocorre aqui um equívoco entre a função crítica e a censura, pois esta tira a dinâmica do leitor, que passará apenas a reproduzir outros métodos de leitura. As leituras na escola não devem ter um constituinte determinante. Uma proposta para corroborar isto seria a de instigar os alunos a trabalharem com suas próprias histórias de leitura.

Assim, Orlandi destaca, de modo a finalizar esta ideia, a ambiguidade do histórico, que é histórico porque muda e porque permanece. Isso não significa que ela abandona o domínio da indeterminação, pelo contrário: ela reconhece a essência desta.

A história do sujeito-leitor: uma questão para a leitura

É possível fazer um esboço diacrônico da formação do sujeito-leitor por meio de conflitos históricos que aconteceram e em sua relação com a linguagem. Aqui, a autora cita a mudança do significado da palavra “texto”. No século XII, “texto” significava “livro de evangelho”. Ela exibe, também, as palavras “interpretar” e “interpretação” – era única, dada pelo mestre.

A intervenção do jurídico sob o religioso foi ficando cada vez maior. Há uma passagem, inclusive, do sujeito religioso (medieval) para o sujeito jurídico (capitalista). Para os ocidentais, tendo a vontade como uma “dimensão essencial da pessoa”, o “eu” seria um “sujeito autônomo que se manifesta em atos”. Surge, dessa maneira, a ambiguidade do sujeito moderno, que é submisso e autônomo, e passa-se a refletir, consequentemente, sobre a formação do sujeito-leitor.

Após tal contextualização, Orlandi indaga, finalmente, a respeito da constituição histórica do sujeito-leitor. Como a escola poderia agir em relação a essa formação?

Sujeito/Sentido

Unidade de dispersão: Uma questão do texto e do sujeito

A autora nos faz adentrar em muitas conceituações diferentes de maneira a seguir essa perspectiva de análise do texto e do sujeito. Ela aborda, primeiramente, a heterogeneidade. O fato de um sujeito ocupar vários lugares no texto marca uma constituição heterogênea do texto pelo sujeito. Essas várias posições são reveladas ao encontrar em um mesmo texto enunciados de discursos diversos.

Outro conceito abordado por Orlandi é o de Enunciação e Ideologia, segundo o qual o sujeito-leitor centraliza o ato de produção e é tomado como fonte de linguagem. Conforme tal conceito há marcas que atestam a relação do sujeito com o que ele diz e com o mundo. No entanto, a perspectiva da análise de discurso afirma que essas marcas que atestam tal relação não existem. As marcas são pistas, como diz Guinsberg, e para atingi-las é preciso teorizar.

A análise do discurso como prática não toma o discurso como um conjunto de textos. São os processos de produção que atestam a regularidade do discurso, não seus produtos. Incorpora-se, nesse sentido, a produção do sujeito e do sentido e a autonomia e unidade do sujeito como efeitos ideológicos. A categoria do sujeito é a categoria que forma toda ideologia, e é importante ressaltar que não há ideologia sem sujeito. Desse modo, divide-se a unidade do discurso em: a identidade do sujeito e a evidência do sentido.

A ideia de Dispersão, unidade e textualidade configura uma relação do sujeito com o texto, do texto com o discurso e a inserção do discurso em uma formação discursiva (lugar da constituição do sentido e da identificação do sujeito) estabelecida. Para que se chegue a uma maneira pela qual o texto seja atravessado por diversos discursos há a necessidade de se tratar sobre a construção da unidade do discurso e da identidade do autor.

Um concerto polifônico

A respeito desse conceito, Orlandi inicia discorrendo sobre o estabelecimento de uma relação entre enunciado, texto, discurso e formação discursiva. O discurso não é igual o texto. Este não é unidade de construção do discurso, mas unidade de análise. A unidade de construção do discurso é o enunciado. Entretanto, o enunciado se refere ao texto para poder ser apreendido, uma vez que o texto é constituído por enunciados, que são compreendidos na perspectiva discursiva na medida em que aparecem nos textos.

Há evocação do sujeito. É estabelecida uma relação de dominância de formação discursiva e conclui-se que o texto é heterogêneo e se apresenta como unidade. É o efeito ideológico discursivo que deve ser estudado na construção do contexto, como uma unidade que forma um concerto polifônico.

Autor e função enunciativa

São abordadas, aqui, como se relacionam as noções de sujeito e autor. O autor é considerado um princípio de agrupamento do discurso, mas é, também, a função que é mais estabelecida pela exterioridade. Partindo de uma heterogeneidade, o princípio de autoria deriva como uma função enunciativa. Esta contempla as diversas funções enunciativas do falante (na ordem): locutor, enunciador e autor.

Assim como a enunciação afirma que há marcação do sujeito no discurso, o contrário também é verdade. O discurso se inscreve no sujeito, o que acaba no apagamento do sujeito. O enunciador é o sujeito dividido nas muitas posições de um texto e o autor apaga o sujeito utilizando a relação deste com o discurso.

 

 

Alguns tipos de polifonia

Considera-se aqui, primeiramente, o locutor e o alocutário. O locutor é aquele que é responsável pela enunciação. Já o alocutário, o correlato do locutor. O locutor é o “eu” da enunciação. O alocutário, o “tu” do discurso. Em um segundo momento, é avaliada a relação do enunciador (que reflete na posição do sujeito o estabelecimento da concepção da enunciação) com o destinatário.

Vê-se, portanto, que a enunciação é considerada polifônica em dois aspectos: na apresentação de mais de um locutor em um determinado enunciado de um recorte; na apresentação de mais de um enunciador em um determinado recorte.

Uma análise de texto

Orlandi, nesta parte de seu livro, faz uma análise da organização do texto utilizando recortes e esquematizações. As primeiras observações referem-se a quatro parágrafos considerados correlatos a um primeiro, que argumenta pra uma conclusão. Nessa parte, ressalta-se que os argumentos iniciais constroem-se numa narração praticamente impessoal, que se desfaz com o aparecimento de certos elementos (nesse recorte o aparecimento da palavra “obviamente”). Isso mostra que o locutor se oculta. É dito, portanto, que há um locutor impessoal – mesmo assim, é encontrado um locutor-enquanto-pessoa.

São apresentadas, após isso, duas perspectivas de enunciado. Uma primeira tem um enunciador que argumenta com X a favor de uma conclusão r. Uma outra trata de um segundo enunciador que está argumentando para uma conclusão oposta. Esta perspectiva é a dominante e corresponde, em grande parte, ao locutor.

Com a utilização de recortes, a autora destaca, em um momento, duas possíveis perspectivas a serem interpretadas (ambas com a perspectiva de locutor impessoal) e, em outro, a marcação de primeira pessoa.

 

Organização textual e mecanismos discursivos

A organização do texto se dá por recortes, que se constroem por meio de linhas semântico-pragmáticas, constituídos no enunciado. Considera-se, aqui, a constituição de sentido de recorte no ângulo discursivo.

A análise de discurso considera a distinção existente entre a semântica linguística e a semântica discursiva. Graças à relação entre os mecanismos enunciativos e os funcionamentos discursivos, pode-se aprender a respeito da autonomia do sujeito na construção de sentidos e da unidade do texto (efeito-sujeito).

A observação do efeito-sujeito relativiza a função da intenção. Diz-se, portanto, que as intenções produzem a organização textual – o que indica pontos importantes do funcionamento discursivo (todas as formações discursivas podem ser apagadas na organização de um texto por conta de uma formação dominante). São as diferentes formações discursivas que revelam a heterogeneidade do sujeito.

Demais perspectivas a serem consideradas:

  • A teoria polifônica da enunciação permite compreender o modo de organização do texto; 
  • A análise de discurso busca revelar, em relação à organização do texto, como é feita a unidade textual; 
  • Em relação ao sujeito, a ideologia evidencia sua construção e a ilusão de sua autonomia, colocando o implícito somo efeito discursivo.

Considerar que o sujeito está inscrito no texto que produz e que o que os diferentes modos pelos quais ele faz isso são representações fazem parte da conceituação das formas de representação do sujeito. São tomadas, aqui, as funções enunciativas do sujeito: a de locutor e a de enunciador.

Mais adiante, se fala em “forma-sujeito”. A noção do sujeito é histórica, ou seja, a relação que o sujeito tem com a linguagem atualmente é diferente da que ele tinha no século XVII. A “forma-sujeito” é característica de formações sociais e contempla autonomia e responsabilidade, características do sujeito-jurídico.

Identidade e identificação

Nesse ponto, a autora salienta que a maior instância de apagamento do sujeito é o autor. É da representação do sujeito como autor que ele é mais cobrado por ser origem e fonte do próprio discurso. Todas as exigências feitas a ele têm como direção fazer com que o sujeito seja visível/identificável. No entanto, o sujeito deve constituir relação com a exterioridade para se colocar como autor e remeter, ao mesmo tempo, à interioridade.

Papel social e responsabilidade/Escola e autoria/ Sujeito, escritor, autor

Fala-se, aqui, sobre o que é necessário para ser autor. Na escola, falta-se compreender o processo em que o sujeito se vê como autor – o que implica na inserção deste no contexto histórico-social, constituindo-o como autor. Portanto, a escola deve definir a passagem da função do sujeito-enunciador para o sujeito-leitor. A respeito disso, se pensa em características que existem entre enunciado e autor, sendo a mais importante a responsabilidade.

A escola deve proporcionar essa passagem de enunciador para autor (a formação do autor é uma das formas de representação do sujeito). O aluno deve experimentar como é ter controle de mecanismos (tanto de domínio do processo discursivo quando de domínio dos processos textuais) por meio da prática. Entretanto, não é a relação com a escola que define o escritor. A escola é fundamental para que haja experiência de autoria.

Problematiza-se, nesse quesito, a subjetividade da relação do sujeito com a escrita na escola. A realidade da escola não é uma realidade possível de instituição. Partindo desse ponto, as reflexões feitas podem servir de apoio à atividade pedagógica, considerando que o conhecimento também é um processo para quem elabora programas de ensino.

 

Significação, leitura e redação

Busca-se o estabelecimento de como a relação que é ponto entre os sentidos e as condições em que estes são produzidos é necessária. Em um lado, é dada a relação do discurso com a exterioridade (sentidos múltiplos/variados). Em outro, é dada a sedimentação dos sentidos (uso regulado da linguagem) – não se pode esquecer que mesmo que seja possível haver muitos sentidos a linguagem é regulada e convencional.

Admite-se que não há uma separação de categoria entre locutor e destinatário: é uma relação de interdependência – quem fala e quem ouve produz sentido –, apesar de não ser uma relação direta e automática. Locutor e destinatário apresentam posicionamentos distintos nas interlocuções (de autor e de leitor). Há uma espécie de modelo ideal daquilo que é considerado boa leitura.

Seguindo, primeiramente, o Circuito A proposto por Orlandi, temos a leitura como uma das coisas que formam o processo de produção da escrita. É ela que fornece o que escrever e o como escrever. No Circuito B há um enfoque no aspecto da redação ser um meio de acesso às leituras do aluno. A partir disso, a autora aponta que é desejável que os alunos reproduzam certos modelos em certos momentos, mas não se deve esquecer que há diferentes relações com as diferentes formas de linguagem.

Em suas observações específicas, Orlandi aborda as responsabilidades pedagógicas e acaba por propor o estabelecimento de procedimentos pedagógicos relacionados à leitura, uma vez que, nesse contexto, há uma luta de classes. As classes populares aprendem sobre uma cultura dominante. Aqui, a autora propõe, também, que medidas sejam elaboradas para que tais classes formem suas histórias de leitura – as quais são desconhecidas pela classe dominante/média.

Mosaico de falas: muitos pontos de vista e de fuga

Orlandi fala da sua convivência com a cultura indígena e do contexto da fala como comemoração histórica para abordar o ponto de estudo de sua especificidade e afirma que “os sentidos são aqueles que a gente consegue reproduzir no confronto do poder das diferentes falas”.

Em sua análise, ela aborda a importância do jornalismo feminino e do feminismo – ambos fazem parte da construção da sociedade e buscam envolver a mulher com ela mesma e com o meio. Em meio a essa realidade, em que nada é único e absoluto, a mulher toma essa ou aquela posição. Essa tomada de posição não acontece apenas por a mulher esse o aquele artigo: depende de sua história e do modo com o qual ela se relacionou com o artigo.

Através do jornalismo feminino e do feminismo, a autora mostra que podemos ser colocados em frente a armadilhas de identidade, e enumera duas:

  1. Há ambiguidade nas falas em grupo: estabelece resistência, mas também propicia mais visibilidade (o que torna mais controlável) ao mesmo tempo – o que gera uma redução da fala do grupo, de maneira que não nos apropriamos dessa fala;
  2. 2- Quando fala-se em nome de grupos, o que é direito fundamental passa a ser um dever obrigatório.

Isso é consequência da relação que se estabelece com os discursos. Não se trata, somente, de sentidos veiculados.

O inteligível, o interpretável e o compreensível

A noção de “efeito-leitor” contempla a relação de interlocução na produção de sentidos – que são efeitos da troca da linguagem. Esses sentidos são partes de um processo, que desfaz o imediatismo e prende o sujeito à responsabilidade do dizer. É exposto, aqui, o modo de constituição do efeito-leitor e como a coerência e a não-contradição atuam na configuração desse efeito.

O “efeito-leitor” é determinado historicamente pela relação do sujeito com a ordem social. É do leitor que se cobra um modo de leitura. Portanto, o “efeito-leitor” é relativo à posição do sujeito, que determina o lugar social da leitura.

Em relação ao sujeito e à individualidade/individualização, apresentam-se duas faces do sujeito. Há uma dupla determinação: uma interna e uma externa ao sujeito. O sujeito de nossa formação social está amarrado à individualidade, que aparece como compulsiva à criatividade/originalidade (esse sujeito é historicamente determinado).

Após falar do modo de leitura e o sujeito-leitor correspondente, adentrar no lugar social da leitura e de abordar a individualidade, Orlandi fala do contraponto do enunciado. O enunciado tem um contraponto por ser considerado no contexto sócio-histórico e na instância do “eu-aqui-agora”. Essa instância é chamada de interdiscurso e aborda uma série de formulações.

A relação entre enunciado e enunciação está na base dos processos discursivos importantes, que são ligados à ilusão do sujeito. Essa ilusão acontece por dois esquecimentos: o de que o discurso não nasce do sujeito e o de que ao longo de seu dizer se formariam famílias parafrásticas. Do primeiro, a ilusão se refere ao de que o sujeito é a fonte do discurso. Do segundo, à onipotência do sentido.

Sujeito, memória, sentido

Formação discursiva de constituição do sentido

As formações discursivas representam as formações ideológicas, no que diz respeito ao discurso. São elas que determinam o que pode ser dito, que definem as condições de exercício do enunciado. São fundamentais porque são unidades divididas, há heterogeneidade nelas mesmas e permitem apreciar o modo de inscrição histórico.

Formação discursiva e receptível

O sujeito intervém no receptível, ou seja, o interdiscurso (o receptível) está no intradiscurso (sequência linguística específica). Pode-se dizer, também, que engaja uma relação do enunciado (receptível) com a formulação (a enunciação). Esse receptível se instala como dimensão da historicidade – é uma sistemacidade do discurso que não é abstrata, é histórica.

Uma metáfora visual: texto e percepção

O texto não é uma unidade homogênea. Para a análise de discurso, pode ser considerado como uma dispersão do sujeito. Todo texto teriam vários pontos de entrada e de fuga em relação à leitura. Os pontos de entrada são as várias posições do sujeito. Os de fuga, as diferentes perspectivas de atribuição de sentidos. Os pontos de entrada são efeitos de relação do sujeito-leitor com a historicidade do texto. Os de fuga são o percurso da historicidade do leitor. A relação entre os pontos de entrada e fuga nos mostram que sentidos não caminham em linha reta.

Outro fato é o de que a relação entre o sujeito-leitor e o texto não é direta. Passa por mediações e determinações variadas. A historicidade do texto e do leitor é relativa, portanto, os pontos de entrada e fuga não existem independentemente.

Conclusão: a forma-sujeito e a compreensão

A conclusão de Orlandi começa pela distinção do inteligível, do interpretável e do compreensível. Temos que o inteligível tem seu sentido atribuído atomizadamente; o interpretável, levando em conta o contexto linguístico; o compreensível considera a significação do contexto, colocando-se em relação com o enunciado/enunciação.

Sobre esse aspecto, trata-se sobre a compreensão. Esta abrange o efeito do eu-aqui-agora e não é uma relação automática. Para chegar a ela, não basta interpretar e fazê-lo é atingir a relação enunciação/enunciado. Quando se compreende, sabe-se que o sentido poderia ser outro.

Diante deste estudo, entende-se que a análise de discurso não é um método de interpretação. Ela problematiza as relações com o texto e conhece mecanismos pelos quais um determinado processo de significação é questionado.

(FERNANDA BUSKO WOITCHIK - Bolsista ID, Português 1)