Prefácio: Esta obra consiste na tradução do conto “La Noche de los Feos”, pertencente à coletânea de contos do autor uruguaio Mario Benedetti, intitulada “La muerte y otras sorpresas”, publicada pela Editora Alfaguara no ano de 1968. Mario Orlando Hardy Hamlet Brenno Benedetti Farrugia nasceu no ano de 1920, em 14 de setembro, na cidade uruguaia de Paso de Toros, e faleceu em 17 de maio de 2009, na capital, Montevidéu. Benedetti, foi um escritor e poeta que fez parte da Geração de 45, e teve mais de 80 livros publicados, muitos deles traduzidos para mais de 20 idiomas. Esta tradução foi também utilizada em atividade realizada pelo PIBID de Ciências Sociais. 

 

A NOITE DOS FEIOS

1

Ambos somos feios. Nem sequer vulgarmente feios. Ela tem a maçã do rosto deformada. Desde os oito anos quando lhe fizeram a operação. Minha asquerosa marca junto à boca vem de uma queimadura atroz, ocorrida no começo de minha adolescência. 

Também não se pode dizer que tenhamos olhos ternos, essa sorte de poucos pela qual os horríveis conseguem deixar de lado a beleza. Não, de modo algum. Tanto os dela quanto os meus são olhos de ressentimento, que só refletem a pouca ou nenhuma resignação com que enfrentamos nosso infortúnio. Talvez isso tenha nos unido. Talvez unido não seja a palavra mais apropriada. Me refiro ao ódio implacável que cada um de nós sente por seu próprio rosto.

Conhecemo-nos na entrada do cinema, fazendo fila para ver dois charmosos quaisquer na telona. Ali foi onde pela primeira vez nos examinamos sem simpatia, mas com uma obscura solidariedade; ali foi onde registramos, já desde o primeiro olhar nossas respectivas solidões. Na fila todos estavam a dois, além disso, porém, eram autênticos casais: esposos, namorados, amantes, avozinhos, e sei lá mais o quê.  Todos – de mãos ou braços dados – tinham alguém. Só eu e ela tínhamos as mãos soltas e contraídas.

Com detenção, insolência e sem curiosidade, olhamos nossas respectivas feiuras. Reparei na deformação de sua face com a autoridade que me era outorgada por minhas bochechas encolhidas. Ela não ficou vermelha. Gostei que fosse dura, que devolvesse minha inspeção com uma olhada minuciosa à área lisa, brilhante, sem barba, da minha velha queimadura.

Finalmente entramos. Sentamo-nos em filas diferentes, mas próximas. Ela não conseguia me olhar, mas eu, mesmo com a escuridão, conseguia distinguir sua nuca de cabelos loiros, sua orelha carnuda bem formada. Era a orelha do seu lado normal.

Durante uma hora e quarenta minutos, admiramos as respectivas belezas do herói desajustado e da doce heroína. Pelo menos eu sempre fui capaz de admirar o bonito. Minha aversão reservo para meu rosto e às vezes para Deus. Também para o rosto de outros feios, de outros espantalhos. Talvez devesse sentir pena, mas não consigo. Na verdade, é que são como espelhos.  Às vezes me pergunto o que teria ocorrido na mitologia se Narciso tivesse a maçã do rosto deformada, ou tivesse as bochechas queimadas por ácido, ou lhe faltasse metade do nariz, ou tivesse a testa costurada.

Esperei-a na saída. Andei uns metros junto dela, e logo lhe falei. Quando se deteve e me olhou, tive a impressão de que vacilava. Convidei-a para conversarmos um pouco em um café ou uma confeitaria. Aceitou de imediato. 

A confeitaria estava cheia, mas nesse momento uma mesa foi desocupada. À medida que passávamos entre as pessoas, ganhávamos gestos e sinais de assombro pelas costas. Minhas antenas estão particularmente ligadas para captar a curiosidade doentia que as pessoas têm, esse sadismo inconsciente dos que tem o rosto comum, milagrosamente simétrico. Esta vez, no entanto, não era nem sequer necessária minha adestrada intuição, já que meus ouvidos conseguiam registrar murmúrios, tossezinhas, falsas pigarreadas. Um rosto horrível e único possui evidentemente seu interesse. Mas duas feiuras juntas constituem por si próprias um espetáculo maior, aos menos coordenado; algo que se deve olhar em companhia, junto a pessoas bem parecidas com as quais o mundo merece ser dividido.

Nos sentamos, pedimos dois sorvetes, e ela teve a coragem (gostei disso também) para pegar da bolsa seu espelho e arrumar o cabelo. Seu lindo cabelo.

“Que está pensando?”, perguntei.

Ela guardou o espelho e sorriu. O poço das bochechas mudou de forma.

“Um lugar comum”, disse, “tal como esse”.

Falamos bastante. Uma hora e meia depois tivemos que pedir dois cafés para justificar nossa permanência prolongada.  Logo me dei conta de que tanto ela como eu estávamos falando com uma franqueza tão ofensiva que ameaçava ultrapassar a sinceridade e tornar-se um quase equivalente da hipocrisia. Decidi aprofundar-me.

“Você se sente excluída do mundo, não é mesmo?”

“Sim”, disse, ainda me olhando.

 “Você admira os charmosos, os normais. Você queria ter um rosto tão equilibrado como esta menininha que está à sua direita, apesar de você ser inteligente, e ela, a julgar por sua risada, irremediavelmente estúpida.”

“Sim”.

Pela primeira vez não pude sustentar meu olhar.

“Eu também queria isso, mas existe uma possibilidade, sabe?,de que eu e você cheguemos a algo.”

 “Algo como o quê?”

“Como nos amarmos, oras. Ou simplesmente nos darmos bem. Chame como queira, mas há uma possibilidade.”

Ela franziu a testa. Não queria dar esperanças.

“Prometa-me que não vai me achar um louco.”

“Prometo.”

“A possibilidade é se deixar levar pela noite. Na noite total. Na escuridão. Entende?”

“Não”

“Você tem que me entender. A escuridão. Onde você não me veja, onde eu não a veja. Seu corpo é lindo, não sabia?”

Sorriu. A deformação das bochechas se tornou levemente escarlate.

“Moro sozinho, em um apartamento, e fica perto daqui.”

Levantou a cabeça e me olhou questionando-me, averiguando sobre mim, tentando desesperadamente chegar a um diagnóstico.

“Vamos”, disse. 

2

Não só apaguei a luz como também fechei a cortina dupla. Ao meu lado ela respirava. E não era uma respiração ofegante. Não quis que eu a ajudasse a despir-se.

Eu não via nada, nada. Mas pude notar que agora ela estava imóvel, à espera. Estiquei cuidadosamente uma mão, até encontrar seu peito. Meu tato me transmitiu uma versão estimulante, poderosa. Assim, vi seu ventre, seu sexo. Suas mãos também me viram.

Nesse instante entendi que devia sair (e tirá-la) daquela mentira que eu mesmo tinha fabricado. Ou tentado fabricar. Foi como um relâmpago. Não éramos isso. Não éramos isso.

Tive que recorrer a todas minhas reservas de coragem, mas fiz. Minha mão subiu lentamente até seu rosto, encontrou a cicatriz, e começou uma lenta, convincente e convencida carícia. Na verdade meus dedos (a princípio um pouco trêmulos, em seguida progressivamente serenos) passaram muitas vezes sobre suas lágrimas.

Então, quando eu menos esperava, sua mão também chegou à minha face, e passou e repassou a costura e a pele lisa, essa ilha sem barba da minha marca sinistra.

Choramos até o amanhecer. Desgraçados, felizes. Logo me levantei e abri a cortina dupla.

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Autoras: Camilla Soto Nater e Nylcéa Thereza de Siqueira Pedra.

As Autoras:

A curitibana Camilla Nater é graduanda do primeiro ano de Letras e  verdadeiramente apaixonada pela língua espanhola e suas muitas facetas.  

Nylcéa Pedra é professora no curso de Letras. Gosta muito do que faz. E entre uma aula e outra, brinca seriamente de traduzir.

 

 

 

LA NOCHE DE LOS FEOS 1

Ambos somos feos. Ni siquiera vulgarmente feos. Ella tiene un pómulo hundido. Desde los ocho años, cuando le hicieron la operación. Mi asquerosa marca junto a la boca viene de una quemadura feroz, ocurrida a comienzos de mi adolescencia.

Tampoco puede decirse que tengamos ojos tiernos, esa suerte de faros de justificación por los que a veces los horribles consiguen arrimarse a la belleza. No, de ningún modo. Tanto los de ella como los míos son ojos de resentimiento, que sólo reflejan la poca o ninguna resignación con que enfrentamos nuestro infortunio. Quizá eso nos haya unido. Tal vez unido no sea la palabra más apropiada. Me refiero al odio implacable que cada uno de nosotros siente por su propio rostro.

Nos conocimos a la entrada del cine, haciendo cola para ver en la pantalla a dos hermosos cualesquiera. Allí fue donde por primera vez nos examinamos sin simpatía pero con oscura solidaridad; allí fue donde registramos, ya desde la primera ojeada, nuestras respectivas soledades. En la cola todos estaban de a dos, pero además eran auténticas parejas: esposos, novios, amantes, abuelitos, vaya uno a saber. Todos -de la mano o del brazo- tenían a alguien. Sólo ella y yo teníamos las manos sueltas y crispadas.

Nos miramos las respectivas fealdades con detenimiento, con insolencia, sin curiosidad. Recorrí la hendidura de su pómulo con la garantía de desparpajo que me otorgaba mi mejilla encogida. Ella no se sonrojó. Me gustó que fuera dura, que devolviera mi inspección con una ojeada minuciosa a la zona lisa, brillante, sin barba, de mi vieja quemadura.

Por fin entramos. Nos sentamos en filas distintas, pero contiguas. Ella no podía mirarme, pero yo, aun en la penumbra, podía distinguir su nuca de pelos rubios, su oreja fresca bien formada. Era la oreja de su lado normal.

Durante una hora y cuarenta minutos admiramos las respectivas bellezas del rudo héroe y la suave heroína. Por lo menos yo he sido siempre capaz de admirar lo lindo. Mi animadversión la reservo para mi rostro y a veces para Dios. También para el rostro de otros feos, de otros espantajos. Quizá debería sentir piedad, pero no puedo. La verdad es que son algo así como espejos. A veces me pregunto qué suerte habría corrido el mito si Narciso hubiera tenido un pómulo hundido, o el ácido le hubiera quemado la mejilla, o le faltara media nariz, o tuviera una costura en la frente.

La esperé a la salida. Caminé unos metros junto a ella, y luego le hablé. Cuando se detuvo y me miró, tuve la impresión de que vacilaba. La invité a que charláramos un rato en un café o una confitería. De pronto aceptó.

La confitería estaba llena, pero en ese momento se desocupó una mesa. A medida que pasábamos entre la gente, quedaban a nuestras espaldas las señas, los gestos de asombro. Mis antenas están particularmente adiestradas para captar esa curiosidad enfermiza, ese inconsciente sadismo de los que tienen un rostro corriente, milagrosamente simétrico. Pero esta vez ni siquiera era necesaria mi adiestrada intuición, ya que mis oídos alcanzaban para registrar murmullos, tosecitas, falsas carrasperas. Un rostro horrible y aislado tiene evidentemente su interés; pero dos fealdades juntas constituyen en sí mismas un espectáculos mayor, poco menos que coordinado; algo que se debe mirar en compañía, junto a uno (o una) de esos bien parecidos con quienes merece compartirse el mundo.

Nos sentamos, pedimos dos helados, y ella tuvo coraje (eso también me gustó) para sacar del bolso su espejito y arreglarse el pelo. Su lindo pelo.

"¿Qué está pensando?", pregunté.

Ella guardó el espejo y sonrió. El pozo de la mejilla cambió de forma.

"Un lugar común", dijo. "Tal para cual".

Hablamos largamente. A la hora y media hubo que pedir dos cafés para justificar la prolongada permanencia. De pronto me di cuenta de que tanto ella como yo estábamos hablando con una franqueza tan hiriente que amenazaba traspasar la sinceridad y convertirse en un casi equivalente de la hipocresía. Decidí tirarme a fondo.

"Usted se siente excluida del mundo, ¿verdad?"

"Sí", dijo, todavía mirándome.

"Usted admira a los hermosos, a los normales. Usted quisiera tener un rostro tan equilibrado como esa muchachita que está a su derecha, a pesar de que usted es inteligente, y ella, a juzgar por su risa, irremisiblemente estúpida."

"Sí."

Por primera vez no pudo sostener mi mirada.

"Yo también quisiera eso. Pero hay una posibilidad, ¿sabe?, de que usted y yo lleguemos a algo."

"¿Algo cómo qué?"

"Como querernos, caramba. O simplemente congeniar. Llámele como quiera, pero hay una posibilidad."

Ella frunció el ceño. No quería concebir esperanzas.

"Prométame no tomarme como un chiflado."

"Prometo."

"La posibilidad es meternos en la noche. En la noche íntegra. En lo oscuro total. ¿Me entiende?"

"No."

"¡Tiene que entenderme! Lo oscuro total. Donde usted no me vea, donde yo no la vea. Su cuerpo es lindo, ¿no lo sabía?"

Se sonrojó, y la hendidura de la mejilla se volvió súbitamente escarlata.

"Vivo solo, en un apartamento, y queda cerca."

Levantó la cabeza y ahora sí me miró preguntándome, averiguando sobre mí, tratando desesperadamente de llegar a un diagnóstico.

"Vamos", dijo.

2

No sólo apagué la luz sino que además corrí la doble cortina. A mi lado ella respiraba. Y no era una respiración afanosa. No quiso que la ayudara a desvestirse.

Yo no veía nada, nada. Pero igual pude darme cuenta de que ahora estaba inmóvil, a la espera. Estiré cautelosamente una mano, hasta hallar su pecho. Mi tacto me transmitió una versión estimulante, poderosa. Así vi su vientre, su sexo. Sus manos también me vieron.

En ese instante comprendí que debía arrancarme (y arrancarla) de aquella mentira que yo mismo había fabricado. O intentado fabricar. Fue como un relámpago. No éramos eso. No éramos eso.

Tuve que recurrir a todas mis reservas de coraje, pero lo hice. Mi mano ascendió lentamente hasta su rostro, encontró el surco de horror, y empezó una lenta, convincente y convencida caricia. En realidad mis dedos (al principio un poco tembloroso, luego progresivamente sereno) pasaron muchas veces sobre sus lágrimas.

Entonces, cuando yo menos lo esperaba, su mano también llegó a mi cara, y pasó y repasó el costurón y el pellejo liso, esa isla sin barba de mi marca siniestra.

Lloramos hasta el alba. Desgraciados, felices. Luego me levanté y descorrí la cortina doble.

FIN

(2010). Ciudad Seva. Recuperado el 21 e octubre de 2012, desde http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/esp/benedett/noche.htm