Toda biblioteca possui uma dimensão inquietante que esconde, como num passe de mágica, ilimitados segredos profundos dentro de silenciosos corações de papel escrito. Corações que pulsam a cada nova leitura, mesmo sob o peso do tempo que subjuga e empoeira livros e homens. Há, pois, um fascínio difuso e impalpável em cada biblioteca: um cheiro, um arranjo único de obras, uma disposição espacial particular, uma geografia sentimental, um ritual, um tempo diferente que ali se desenrola na cadência de outro ritmo, mais lento e consciencioso.

No entanto, para além desta dimensão abstrata, subjetiva e espiritual, uma biblioteca também se configura como um organismo social concreto e um espaço de ação política regida por convenções, normas e costumes. Neste sentido, ao focalizar a dimensão política da biblioteca e seu papel no atual modelo produtivo das sociedades ocidentais, chega-se inevitavelmente a um questionamento quanto ao real significado que elas – as bibliotecas –, nas suas mais diversas materializações, possuem e evocam dentro das macroestruturas socioeconômicas nas quais estão inseridas.

É a partir deste questionamento que Silvia Castrillón, autora colombiana cujas pesquisas sobre bibliotecas vêm se tornando referência na América Latina, esmiúça e analisa a atual crise ontológica das instituições bibliotecárias. No ensaio intitulado Biblioteca escolar: ¿un modelo legitimista o una propuesta transformadora?, a autora estabelece logo no título a dicotomia que fundamenta a tese central de seu texto.

Por um lado, temos um modelo tecnicista de biblioteca, que reflete e legitima relações de poder mais amplas. Inserida num contexto sociopolítico que possui como valores fundamentais a produtividade, a competitividade e o bem-estar econômico, a biblioteca – e, em especial, a biblioteca escolar – se transforma numa ferramenta de aquisição tecnológica e de desenvolvimento laboral dentro do mecanismo da chamada era da informação e do conhecimento. Sua importância é reconhecida, mas seu significado é reduzido ao pragmatismo imediato daquilo que pode ser codificado em termos econômicos. O conhecimento vira moeda de troca e constroem-se bibliotecas como espaços de upgrade tecnológico e instrumentalização.

Além desta configuração mecanicista do modelo hegemônico de biblioteca que vem sendo instalado no nosso tempo, Silvia Castrillón também diagnostica o contraditório isolamento das bibliotecas dentro do sistema escolar. Não é incomum que exista um abismo separando a sala de aula da biblioteca, e a disrupção entre elas é uma aberração metodológica que segmenta inexplicavelmente duas partes integrantes do mesmo projeto pedagógico.

Mas, como a intenção da autora não é simplesmente colocar o dedo na ferida tão dolorida que é a educação, ela apresenta a biblioteca como uma possibilidade de proposta transformadora e um espaço de ação política essencialmente radicada na escola. Afinal, uma biblioteca, antes de ser um o quê (o que é?) ou de se preocupar com um como (como se faz?), deve ser um para quê? (para quê, afinal, se constroem bibliotecas?).

Sua resposta é categórica:

Estas iniciativas [de construção coletiva de bibliotecas] deberían orientarse a desarrollar en la escuela una reflexión sobre la información y sobre el conocimiento; sobre las circunstancias en que estos se producen, las condiciones de mercancía a que han sido reducidos los objetos culturales (los libros, por ejemplo) y la información, las relaciones de poder que impiden su apropiación cuando esta es fuente de riqueza para pocos, pero también sobre la información, y la lectura e y escritura como necesidades para la comprensión del mundo y de sí mismo y como fuente de inspiración para la acción. También debería propiciarse la reflexión sobre el valor social que lectura y escritura tienen; la importancia de que su apropiación sea social, mediante prácticas sociales y con fines sociales. La biblioteca – la pública y la escolar – debería ser quien invitase a la sociedad a una reflexión de esta naturaleza, si se piensa que ambas tienen un proyecto político común que debe propender por una sociedad más justa e incluyente. (Castrillón, 2011, pág. 171)

 

Enfim, uma biblioteca que seja um espaço de constante ressignificação crítica do meio social, das condições materiais de existência e do sistema político vigente. Um local de ação e intervenção, autoconsciente de suas possibilidades e promotor da dignificação do homem.

Mesmo que o substrato da análise de Silvia Castrillón seja a realidade educacional colombiana, especialmente a de cidades que obtiveram avanços significativos na expansão do sistema bibliotecário, como Bogotá e Medellín, as reflexões e conclusões que dali se originaram podem ser deslocadas e aplicadas ao estudo do nosso sistema educacional, dado que os contrastes, problemas e desigualdades da América Latina estão democraticamente distribuídos pelo continente como um todo.

Há um lastro histórico de injustiças e desassistências que nos une tragicamente no mesmo tecido social, apesar da aparente distância que a língua nos impõe...